terça-feira, 27 de junho de 2017

Relações perigosas: da depressão à poesia

Resultado de imagem para não sorrir de uma pessoa depressiva, esse é o ultimo estágio de sofrimento de uma saudade
Doença da moda na ponta dos lápis dos diagnósticos PSIS, a depressão, cujas causas ainda são pouco conhecidas pela ciência, constitui o tema central do livro Perdas e Danos. Retomando teóricos e estudiosos, da psicanálise de Freud à Classificação de Transtornos Mentais e Comportamentais da Organização Mundial da Saúde, o autor discorre sobre a depressão procurando apresentar seus aspectos psicodinâmicos. Partindo do pressuposto de que os sintomas e sentimentos depressivos existem desde que existe o homem, percorre o caminho histórico de seu isolamento e classificação médica. Mostra ainda as diferentes definições e os variados tipos de experiências depressivas: a reação depressiva normal, o luto, a neurose depressiva, a posição depressiva, até chegar ao seu estado mais grave, que é a depressão melancólica.
Em 1917, Freud já havia estudado amplamente o luto e proposto uma psicodinâmica da melancolia (ou depressão). Em Luto e Melancolia, o pai da psicanálise apresenta uma psicodinâmica e uma diferenciação destes dois processos psíquicos de busca de elaboração do desamparo e sofrimento frente a uma situação de perda. A perda de um objeto querido e amado, seja ele uma pessoa (um filho, marido, amigo), seja ele um objeto ou um ideal, uma aspiração (o sonho de um bom emprego, a crença em um político que torne o país melhor), provoca no enlutado um profundo desinteresse pelo mundo externo, pela vida e por suas atividades cotidianas. É um processo normal de desligamento do objeto perdido, em que o ego, que antes era repleto de ligações e investimentos afetivos com o objeto, se vê perdido e obrigado a religar seus fiozinhos de investimento afetivo em um objeto substituto. É um processo longo e doloroso, mas com grandes chances de resolução satisfatória e fortalecedora, se o sujeito que o realiza estiver amparado por bons objetos internos (referenciais internos de aconchego e proteção).
Já na melancolia, estado patológico do luto, o sujeito que perde o objeto amado perde também, junto com o objeto, uma parte de si. Assim, no quadro sintomatológico, depressão e luto caracterizam-se pelos mesmos sintomas: humor alterado, tristeza profunda, desinteresse pela vida, prostração. Na melancolia, entretanto, além destes sintomas há um substantivo rebaixamento da autoestima, em que o sujeito ataca o seu próprio ego, o seu próprio eu. Nesse estágio podem surgir as ideias e, inclusive, os atos suicidas.
Como poetizou certa vez um ilustre psicanalista ribeirão pretano, a maneira mais fácil de compreender o que são o luto e a melancolia é ouvindo duas músicas, de diferentes épocas, do grande compositor Chico Buarque: A Rita, de 1965, e Trocando em miúdos, 1978.
Na primeira, o eu-lírico perde Rita, seu objeto de amor e investimento afetivo e, junto com ela, perde seu sorriso, seus planos, seus pobres enganos, os seus vinte anos e até seu coração. E, além de tudo, a Rita lhe deixa mudo o violão. É a melancolia, o estado patológico em que o enlutado perde, junto com o objeto amado, parte de si e permanece sem saber exatamente o que se foi junto com outro perdido. A Rita causou no poeta perdas e danos.
Já na segunda música, composta em parceria com Francis Hime, por um Chico mais maduro musical e emocionalmente, o eu-lírico (que tanto pode ser uma mulher como um homem) perde também seu amor, sai com o peito dilacerado, sofre, mas não se perde no outro, pois leva consigo sua identidade: “Eu levo a carteira de identidade/Uma saideira, muita saudade/E a leve impressão de que já vou tarde”.
O que se percebe, nos dois estados e nas outras modalidades de sofrimento depressivo, é que são experiências deflagradas por uma perda. Ainda que a perda atual seja apenas a gota d´água que encheu a caixa que já estava cheia de lutos passados mal resolvidos. Nesse sentido, o que define, entre outros fatores, a vivência patológica (depressão) ou “normal” (luto) de uma perda é a relação anteriormente estabelecida com o objeto de amor. Quando esta relação é narcisista, ou seja, quando a eleição do objeto se dá de acordo com o que o sujeito quer que o outro seja e não de acordo com o que ele é de fato, o risco é o de uma profunda idealização das características do outro, que o impede de existir enquanto sujeito. O outro passa a funcionar como uma tela em que o sujeito projeta seus anseios, desejos e expectativas. E, se “uma das facetas da melancolia é o seu caráter onipotente e sua predominante forma de relação narcísica consegue e com o outro”, já sabemos em que pode culminar a perda de um objeto assim desejado. São estas as relações que estão sendo chamadas pelo autor do livro de perigosas.
E, afinal, que relações são estas? São aquelas que, tendo as primitivas relações com os pais como seu núcleo fundador, mantém, na vida adulta, a imagem de um outro todo poderoso. Esse outro contém tudo o que é belo, perfeito e bom. Este tipo de vivência pode ser encontrado nas relações de namorados, amigos, casais, profissionais, relações de estudo, entre pais e filhos e muitas outras.

Um bom exemplo deste tipo de relação, citado pela psicanalista Françoise Dolto em seu livro Quando os pais se separam, é a da mãe recém separada, que mantém uma relação super protetora com seu jovem filho ou filha. Todo seu afeto, carinho e proteção anteriormente dedicados ao parceiro, com a perda deste, voltam-se para a criança e a aprisionam em uma relação excessivamente investida, da qual dificilmente conseguirá libertar-se. São aquelas mães que, mais adiante, dirão ao filho “Foi por você que me sacrifiquei e que não voltei a me casar” (citado em Dolto). A vida dessas crianças fica assim paralisada em função da culpa. Segundo a mesma autora, “elas ficam, de fato, encarregadas da mãe pelo resto da vida, mesmo que cheguem a evoluir e a se casar”.
Em uma relação estabelecida desta maneira, muitas vezes, o filho não consegue, não pode desenvolver sua própria vida, está sempre ligado àquela mãe (ou pai, ou companheiro, marido) que “sacrificou sua vida, anulou-se” para “viver para o filho”. Este então, adolescente, não poderá fazer uma faculdade fora da cidade, nem arrumar emprego longe da casa da mãe. Adulto, não poderá casar ou, se vier a ter um companheiro, poderá ter sempre sua intimidade e autonomia prejudicadas pela presença intrusiva da mãe onipresente.

O grande perigo dessas relações é o fato de que, a qualquer momento, como acontece na situação de perda, tudo o que era bom, perfeito e lindo pode tornar-se o seu oposto, transformando-se em ruim, persecutório e intrusivo na mente do depressivo. Isto acontece em função da imensa dificuldade que essas pessoas tem de integrar em um único objeto de investimento (amigo, animal de estimação, esposa, marido, trabalho, ideal) suas características boas e más. Então se hoje meu time do coração é o melhor e mais perfeito time do mundo, amanhã, quando perder um jogo ou título e me decepcionar, ele se tornará o que de pior há na face da terra.
A capacidade de integrar e assumir ante um mesmo objeto sentimentos opostos como amor e ódio é chamada pela psicologia de ambivalência emocional. E, para melhor compreendê-la, nada melhor que voltar ao Chico e escutar seu Samba do grande amor. Nele todos os desejos extremados do eu-lírico relacionados ao grande amor (vivê-lo, rir-se dele) são suave e jocosamente negados pelo refrão sempre presente após a enunciação do grande amor: mentira!

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